20 de julho de 2014 Comments

A aula inclusiva: Problemas de aprendizagem, problemas de ensino

“É uma loucura seguir fazendo sempre o mesmo e esperar resultados diferentes.” Albert Einstein

Maria José Borsani

Apresentação do tema

O fato de analisar a escola inclusiva no alvorecer da segunda década do século XXI recorta marcadamente o cenário temporal, já que nos situa em eventos recentes, ao mesmo tempo em que impõe certas reflexões, que se vinculam com fatos anteriores, os quais, em alguma medida, permitem interpretar a partir dessa ótica o que hoje acontece.

Algumas décadas atrás, o tema da educação inclusiva só era comentado por alguns profissionais da educação e da psicologia, que começavam a se questionar acerca dos alcances e dos limites da educação especial e da comum, numa tentativa de articular ambas as ofertas, gerando, na maioria das vezes, resistências importantes em ambos os lados. O panorama de hoje, mesmo com suas fraquezas e obstinações, distancia-se totalmente daquele, pois a ideia de uma escola inclusiva conseguiu sair desse restrito âmbito profissional ao qual se circunscrevia e hoje se localiza em espaços que superam aquele limite.

Todos sabemos o quanto a escola comum, ainda hoje, custa a abrir suas portas para a nova modalidade inclusiva. Em mais de uma ocasião, operaram intransigências que obedecem ao paradigma da homogeneidade, que condicionam e entorpecem os processos inclusivos. Mas é justo afirmar que nem tudo foram barreiras e impedimentos e que algo foi sendo gerado a partir das propostas realizadas ao longo de várias décadas. Não têm sido poucas as instituições educativas que se juntaram para pensar em construir uma escola plural e que se atreveram a se mostrar com suas potencialidades, desconcertos, temores e receios. 

É verdade que esses movimentos iniciais foram herança do currículo oculto daquelas escolas, que se sentiram convocadas ao trabalho com a diversidade e que foram à tona com suas experiências recentes na última década do século passado.

Contribuem para a visibilidade desses movimentos uma série de acontecimentos internacionais relevantes, também situados ao final do século XX, que respaldam e garantem a implementação responsável dos projetos de educação inclusiva.

Na Argentina, o fecundo trabalho de anos levado adiante por diversos grupos de pais, profissionais e organizações da comunidade – governamentais e não governamentais – vinculadas com a temática da educação inclusiva se vê refletido em três fatos nodais que contribuem para sua consolidação: a Lei Federal de Educação e a posterior Lei Nacional de Educação, a criação do Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (INADI) e a Lei de Incapacidade.

Esses marcos colocam na categoria de questão de Estado a atenção à diversidade, respeitando as NEE (Necessidades Educacionais Especiais) daqueles alunos cujos direitos se veem afetados ao serem discriminados por sua origem étnica ou sua nacionalidade, por suas opiniões políticas ou suas crenças religiosas, por seu gênero ou identidade sexual, por terem alguma deficiência ou enfermidade, por sua idade ou seu aspecto físico. Suas funções se orientam a garantir para essas pessoas os mesmos direitos e garantias de que goza o conjunto da sociedade, ou seja, um tratamento equitativo, marcando um antes e um depois no cuidado responsável da seguridade social, pois aparece a figura da cobertura obrigatória com financiamento previsto, que estabelece um trânsito definitivo desde uma cobertura opcional até uma obrigatória e ampla.

O impacto que estas regras têm na efetivação dos projetos inclusivos de alunos com NEE não demora a aparecer dentro da escola. A partir de uma cobertura majoritária, são mais estudantes que têm acesso a diagnósticos precisos, abordagens e tratamentos que os possibilitam compensar e/ou superar as problemáticas das aprendizagens.

Por sua vez, as instituições se sentem amparadas pelo enquadramento legal e pelas normas ministeriais, o que permite certa abertura sobre o assunto e modificações que consideram as variabilidades subjetivas na hora de aprender.

Uma das inovações de maior hierarquia e relevância é a articulação entre a escola especial e a escola comum e a aparição maciça da figura do docente integrador. Geralmente, sua incumbência se restringia à entrada de métodos e recursos da escola especial para a comum, por meio do aconselhamento e da concepção e implementação dos ajustes curriculares que possibilitavam a aprendizagem dos alunos incluídos. Agora, no entanto, o amparo é maior, mais específico e personalizado, já que o docente integrador se incorpora à equipe permanente da escola comum.

Essas conquistas, indiscutíveis, marcam um ponto de inflexão no futuro da abertura da escola às necessidades de seus alunos, que deve ser acompanhada por um profundo trabalho de reflexão no seio de cada instituição. Os reposicionamentos institucionais e a consideração do tema dentro do Projeto Educativo Institucional resultam indispensáveis e insubstituíveis para a construção da escola plural, e não há lei nem professora integradora alguma que substitua seus efeitos. Seria apropriado, então, que este trabalho fosse colocado em torno das representações sociais sobre a escola especial e a comum, sobre o que significa pertencer a uma ou a outra, à diferença e à diversidade para pensar acerca das resistências que operam na hora de construir uma escola para todos e todas.

Ao avançar nesta temática, faz-se indispensável considerar que todo problema de aprendizagem supõe um problema de ensino envolvendo o docente, que precisa repensar sua práxis cotidiana para estabelecer adequações curriculares, projetar estratégias e intervenções pedagógicas que possibilitem a construção de uma aula inclusiva na qual seja possível a aprendizagem de todos e de cada um dos alunos. 

A aula inclusiva

A aula inclusiva necessita de um professor que possa se localizar como tal frente a cada um de seus alunos, que encontre aquilo que possa lhes ensinar e consiga situar cada sujeito com quem compartilha a aula como um aluno possível, a quem oferecerá oportunidades para que se desenvolva cognitiva e socialmente, para que seja cada dia mais capaz, mais independente e mais comunicativo, e desenvolva ao máximo suas possibilidades e competências, para assim circunscrevê-lo em um mundo de relações significativas.

A maneira com que cada professor concebe seu aluno, a pergunta que cada educador se faz acerca do aprendiz, é a matriz fundamental que possibilita o vínculo e o pilar que suporta a aprendizagem. Por isto, é tão necessário abordar o que ocorre com os adultos em relação a esse outro que os sacode, questiona ou impressiona, porque compreender e interpretar os substratos subjacentes na relação docente-aluno permite, na maioria dos casos, abrir um espaço possível para cada aluno com suas particularidades, espaço que não é marcado pela realização de um rosto, de um diagnóstico coagulante ou de um prejuízo, mas pelo genuíno desejo de poder construir a incerta aventura de ensinar e aprender, de ser professores, de ser alunos.

Esta proposta se concretiza ao diversificar a proposta educativa em função do que cada aprendiz necessita, para avançar com uma oferta pedagógica superior voltada para a escola inclusiva que respeita os diferentes modos e tempos de aprender das crianças e adolescentes que chegam às salas de aula. 

A diversificação curricular se estabelece como uma instância possibilitadora que oferece novas dimensões ao considerar as variáveis populacionais como uma realidade de nossos dias, com direito a uma oferta educativa que respeite suas necessidades. A plataforma de trabalho é de amplo espectro e se desdobra em propostas de diferente complexidade em relação ao tratamento do tema, o que permite convidar cada aluno a uma atividade que põe em jogo suas potencialidades, as desafia dentro de sua Zona de Desenvolvimento Proximal e o convida a superar seu nível de aprendizagem.

A mediação do contexto cultural dá suporte aos alunos em sua relação com os objetos de conhecimento, o que constitui todo um ato de significação que possibilita uma passagem de estado de menor a maior conhecimento em um processo em que o aprendiz assimila algo compartilhado, trate-se de um sistema semiótico, da resolução de problemas ou de uma produção gráfica, que o permite revisar seus próprios sistemas de conhecimento. Neste processo, o sujeito se apropria de um dispositivo fundamental na troca de nutrientes com o seu grupo de pares.

A aula inclusiva é compatível com o modelo educacional inclusivo, que incentiva estratégias de compartilhamento, supõe uma inteligência em permanente construção e progresso, suscetível de modificação quando encontra as condições adequadas para uma verdadeira aprendizagem.

A base construtivista sustenta-se na perspectiva de construção que cada sujeito pode realizar e que, por sua vez, deve ser referenciada num contexto sócio-histórico específico e necessariamente articulado com a subjetividade de cada aprendiz.

Para concretizar este esperado modelo pedagógico que responde ao paradigma da diversidade, é importante o conhecimento que cada docente tem acerca de seu aluno, de suas necessidades específicas, de suas potencialidades, de suas dificuldades, para, em função destas, fixar as metas e objetivos que se ampliam de forma gradual, adequados às próprias possibilidades e êxitos do aluno e do grupo e não em relação a um padrão populacional ou a um projeto curricular descontextualizado.

Aprender em contextos de inclusão

O princípio de inclusão pressupõe a disponibilidade de um ambiente escolar o menos restritivo possível. É nesta direção que, se possível, propõe-se a efetuar a escolarização dos alunos com NEE dentro da escola comum, e não há dúvidas de que se aprende melhor em contextos de inclusão. Porém, isto não quer dizer que a inclusão seja sempre a melhor opção para todos os alunos.

A inclusão educativa é uma possibilidade, mas não a única e nem sempre a melhor. No campo educacional, o debate se tem centrado sobre se os alunos com dificuldades em aprender evoluem mais e melhor em contextos inclusivos ou em contextos segregados. Enquanto existe normalmente divisão de opiniões e respostas à pergunta de ser preferível e mais proveitosa a escola comum ou a escola especial, a postura inclusiva supera a separatista.

Poderíamos dizer, grosso modo, que os alunos matriculados na escola comum estabelecem relações que lhes fornecem oportunidades de adquirir habilidades sociais e comunicativas mais amplas, estando constantemente expostos aos modelos de seus pares, que lhes proporcionam vias para relacionar-se e aprender, ampliando com mais facilidade suas aquisições educativas e aumentando suas possibilidades de um melhor desempenho social a longo prazo.

A questão primordial não é, então, se os alunos com transtornos em suas aprendizagens devem receber educação especializada isolados ou junto a um grupo de seus pares, mais heterogêneo, mas como se pode responder melhor às suas NEE, levando em conta que a condição de um diagnóstico médico, psicológico, linguístico, social etc., não pode nem deve determinar o tipo de companheiros com quem compartilhar, total ou parcialmente, um projeto escolar, mas apenas apontar o tipo de apoio necessário para alcançar a aprendizagem.

Neste sentido, podemos pensar que, depende de cada circunstância em particular, o projeto educativo que convém estabelecer e, quando as alternativas são ainda insuficientes, surgem novas modalidades inovadoras, derivadas de experiências concretas que estão sendo realizadas em diversos centros escolares e profissionais.

É necessária uma grande transformação para que a escola se abra à diversidade, para que possa erigir-se como agente de inclusão e de resposta às necessidades de seus alunos, conforme os novos contextos socioculturais e os tempos de hoje.

As instituições educativas produzem subjetividade, constroem e oferecem conceitos, modelos de saúde e de doença, propõem ao aluno formas relacionais que se somam como condições de humanização através de espaços de diálogo, de jogo, de vida, onde ele pode instalar-se e crescer com os outros.

A ideia é que, na escola, haja um lugar possível para cada aluno, lugar que ele deverá encontrar, construir, disputar, manter, onde cada aluno seja único a partir de sua própria história, onde ainda seja um entre todos, um mais entre tantos pertencentes à comunidade educativa a partir da categoria “aluno”.

María José Borsani é Professora Especializada em Educação Inclusiva e Terapeuta Ocupacional (U.N.R.) em Buenos Aires - Argentina.

O tema deste artigo de O tema se desenvolve amplamente em: Borsani, M.J. (2011) Construir un aula inclusiva. Buenos Aires. Paidós. Menção de Honra do Prêmio: Isay Klasse al Libro de Educación 2010- 2011 da Fundação El Libro.

Fonte: Rede Saci

13 de julho de 2014 Comments

Alex Garcia é o 1º surdocego a cursar uma universidade no Brasil


Alex Garcia (Lézio Júnior/Editoria de Arte)


O gaúcho Alex Garcia, 38 anos, é hoje uma das principais vozes na luta pelos direitos da pessoa com deficiência no Brasil. Tem uma doença rara, popularmente conhecida como "ossos de cristal", ele convive desde a infância com a perda gradativa da audição e da visão, o que lhe exigiu meios e tecnologias específicas para poder se comunicar com outras pessoas. Os ouvidos de Garcia são as palmas de suas mãos. "As escrevem com letras de forma na palma da minha mão, uma letra sobre a outra, dando uma pausa para a separação de palavras", explica.

Além disso, ele conta com notebook com um potente ampliador de palavras, pois ainda consegue ver as letras quando elas estão bem grandes e com bastante contraste. E foi por meio desta tecnologia que ele concedeu esta entrevista para o Diário da Região. Primeiro surdocego a cursar uma universidade no Brasil, Garcia não poupa críticas quando avalia a inclusão do surdocego e de outras pessoas com deficiência na educação brasileira. “Já estive em mais de 30 países e ficou óbvio que o Brasil está mais de 150 anos atrasado no quesito educação. Este quesito poderia ser de alto nível, mas falta vontade de fazer acontecer”, dispara. À frente da Associação Gaúcha de Pais e Amigos dos Surdocegos e Multideficientes (Agapasm), ele viaja todo o Brasil informando e orientando pais, educadores e outros profissionais sobre a realidade da surdocegueira. 

Em maio, ele esteve em Rio Preto, quando realizou palestra para universitários da Faculdade de Medicina e Enfermagem (Famerp) e participou da Conferência Municipal de Atenção à Saúde da Pessoa com Deficiência. Indagado sobre os principais obstáculos enfrentados pelas pessoas surdocegas no Brasil e no mundo, Garcia aponta o distanciamento e a falta de paciência das outras pessoas. “Por mais que tenhamos habilidades, nenhum ser humano é perfeito a ponto de não precisar de algum apoio”, enfatiza o gaúcho de Santa Rosa (RS). “Na sociedade de hoje, as pessoas estão cada vez mais distantes umas das outras. A distância tem efeitos negativos para qualquer pessoa com deficiência, mas, para a pessoa surdocega, ela é bombástica.” 


Diário da Região - Alex, você nasceu surdocego? Qual é sua doença e como ela afeta o organismo? 


Alex Garcia - Nasci com as deficiências de audição e de visão, mas elas não eram tão severas como hoje. Nasci com uma doença rara, chamada osteogeneses imperfecta, também conhecida como “ossos de cristal”. Esta doença caracteriza-se basicamente por anormalidades do colágeno, podendo afetar muitos tecidos de nosso corpo. No meu caso, a doença afetou fortemente a audição, a visão, os tendões, os músculos, as articulações e a pele. Meus ossos foram afetados de forma mais moderada. Também tenho hidrocefalia. 


Diário - Quais obstáculos você teve de enfrentar por conta de sua surdocegueira? 


Garcia - Os maiores obstáculos foram, e ainda são, a impaciência e a distância das outras pessoas. Pense no mundo que nos cerca. Por certo, observará que tudo a nossa volta se conecta aos sentidos da visão e da audição. Assim, a falta destes sentidos representa enormes dificuldades para o desenvolvimento. Nós, pessoas surdocegas, temos meios e formas para nos comunicar. 


A comunicação é imprescindível, mas todas as formas de comunicação para uma pessoa surdocega somente podem ser desenvolvidas por meio do contato, da proximidade com outras pessoas. Por outro lado, na sociedade de hoje, as pessoas estão cada vez mais distantes umas das outras. A distância tem efeitos negativos para qualquer pessoa com deficiência, mas, para a pessoa surdocega, ela é bombástica, pois ela não possui, parcialmente ou totalmente, os sentidos da visão e da audição. 


Diário - E a impaciência? 


Garcia - Todos os meios de comunicação usados por pessoas surdocegas possuem uma característica particular, além do contato e da proximidade: a lentidão. Cada meio é um meio e cada surdocego é um surdocego, ou seja, temos modelos que se diferem no quesito lentidão e rapidez, mas nenhum deles alcança a rapidez da fala, por exemplo. Desta forma, a impaciência do ser humano surge avassaladora e, consequentemente, não se aproximar ou se afastar rapidamente é a tônica do processo. Pode parecer impressão minha, mas a cada dia as pessoas estão mais impacientes. E isso é um tsunami para uma pessoa surdocega. 


Diário - Quais os meios que você encontrou para superar estes obstáculos? 


Garcia - Criei os meus “passos” para o desenvolvimento, que busco exercitar e transmitir para as outras pessoas. Conhecer a si mesmo. Aqui temos o primeiro passo. Conhecer a si mesmo, as nossas necessidades e habilidades, leva certo tempo, portanto, não cabe no tempo de uma novela. O segundo passo é controlar as emoções. Para controlar as emoções, devemos nos conhecer. Exatamente. Somente é possível dar um novo passo com segurança se o anterior estiver sólido. Planejar as ações é o terceiro passo. Para planejar ações, devemos nos conhecer e controlar as emoções. 


Fato! O planejamento é a mola mestra do desenvolvimento, mas um mau planejamento pode colocar tudo a perder em pouco tempo. Orientar o meio. Aqui temos o quarto passo. Conhecendo a si mesmo, controla-se as emoções. Emoção sob controle, planeja-se ações e, então, por fim, orientar o meio torna-se possível. Orientar o meio é o ápice, pois vivemos em sociedade e, por mais que tenhamos habilidades, nenhum ser humano é perfeito a ponto de não precisar de algum apoio. 

Diário - Como foi a convivência com uma criança e um adolescente surdocego para sua família? Faltava informação a seus pais? Como eles foram buscar essas informações? 


Garcia - Sempre moramos no interior do Rio Grande do Sul, em uma cidade de apenas 33 mil habitantes. Meus pais, quando nasci, eram dois adolescentes (o pai com 19, e a mãe, 17 anos) com um bebê com deficiência nos braços. Minha mãe era dona de casa, e meu pai, caminhoneiro. Nada de saberes sobre a questão. Há 38 anos, pouco ou quase nada existia para o meu caso. 


Mas o amor move montanhas. Eles buscaram ajuda em Porto Alegre e outras cidades maiores. A peregrinação foi constante durante muitos anos, mas nunca eles me abandonaram. Meus pais venderam tudo que tinham. Reconquistaram e venderam novamente. Tudo para custear minha atenção e recuperação constantes. A frase de minha mãe, dita para meu pai, é célebre: “O Alex é nosso e nós vamos cuidar dele.” 


Diário - Como você se comunica no cotidiano? 


Garcia - Sobre a comunicação do surdocego, é sempre bom recordar que existem dois grupos de surdocegos: os pré-simbólicos, aqueles que adquiriram as deficiências audiovisuais antes da estruturação da linguagem, da comunicação e de uma língua; e os pós-simbólicos, que são aqueles que adquiriram as deficiências audiovisuais depois da estruturação da linguagem, da comunicação e de uma língua. A surdez que vai delinear o modelo de comunicação. 


Se a pessoa surdocega nasceu surda e depois perde a visão, é provável que sua comunicação terá como base sua língua materna, ou seja, a de sinais. A língua de sinais, nestes casos, será adaptada para a inexistência ou déficit visual do surdocego, adaptando-a para ser recebida por este pelo movimento ou pela proximidade. Já para aqueles que não nasceram surdos, como é o meu caso, a comunicação, provavelmente, terá como base o português. Assim sendo, tenho um modelo de comunicação e faço uso de uma tecnologia. 


O modelo de comunicação seria a escrita na palma da mão. As pessoas escrevem com letras de forma na palma da minha mão, uma letra sobre a outra, dando uma pausa para a separação de palavras. Como tecnologia, faço uso de um notebook com um potente ampliador de caracteres. Ainda posso ver as letras quando estão bem grandes e com bastante contraste. Conhecer as formas de comunicação da pessoa surdocega é de fundamental importância para sua inclusão. 


Diário - Você foi o primeiro surdocego a frequentar uma universidade no Brasil. Como fazia para aprender o conhecimento? Como era a relação com professores e companheiros de sala de aula? 


Garcia - Com os colegas, foi excelente, mas, ao chegar na universidade, em 1997, percebi que teria inúmeros problemas com alguns docentes. Falta de acessibilidadade e de vontade para mudar este quadro, além da gritante disparidade de saberes práticos entre minha pessoa e o ambiente. Muitos docentes sentiram-se desconfortáveis em ter em sala de aula uma pessoa com enorme bagagem, mas com uma deficiência que quebra com a normalidade do ambiente universitário. 


Já estou convencido de que a educação brasileira é péssima como um todo; e, para surdocegos, não há o que falar. Já estive em mais de 30 países e ficou óbvio que o Brasil está mais de 150 anos atrasado no quesito educação. Este quesito poderia ser de alto nível, mas falta vontade de fazer acontecer. Se a educação brasileira atingisse o surdocego, nós teríamos mais casos de sucesso, mas isso não acontece. 


Eu consegui me desenvolver porque tive apoio familiar e aprendi a lutar pelos meus direitos, mas a maioria dos surdocegos não tem essas oportunidades. Nós, surdocegos, somos muito invisíveis, este é o nosso principal problema. Invisíveis até mesmo para as políticas sociais e de educação. A educação brasileira vive abortando o desenvolvimento pleno das pessoas surdocegas. 


Diário - Há números sobre a população de surdocegos no Brasil? Como você avalia a inserção dessas pessoas em segmentos sociais como a escola e o mercado de trabalho? 


Garcia - Não há números confiáveis, porque ainda não foi feita nenhuma pesquisa nacional. No Brasil, estimo cerca de 1,5 milhão de pessoas surdocegas. Segundo pesquisas, cerca de 8% da população com Síndrome de Down tem surdocegueira. Nos Estados Unidos, é a principal causa dos cerca de 50 mil casos de surdocegueira do País. No Brasil, estima-se que venha ao mundo uma criança com Síndrome de Down a cada 600 mil nascimentos, segundo o Ministério da Saúde. 


Esta média é muito superior a de outros países, onde o percentual de aborto de crianças com esta síndrome chega a 90%. Tomando a estimativa do Ministério da Saúde como base, nascem mais de 23 mil surdocegos no Brasil todos os anos, oriundos apenas da Síndrome de Down, e pelo menos mais 30 mil são afetados pela surdocegueira de outras origens. Podemos contar nos dedos os surdocegos que estão no mercado de trabalho. Uma vez, nos Estados Unidos, alguém me disse que as pessoas têm medo dos surdocegos. 


Não creio que tenham medo dos surdocegos, mas acredito, sim, que o medo está em não conseguir se comunicar com um surdocego. As empresas e os empregadores se questionam a todo momento sobre a comunicação desse público. Acho que o surdocego irá fazer parte do mercado de trabalho quando a sociedade acreditar que pode, sim, haver comunicação sem escutar e enxergar. Esse é mais um paradigma a ser rompido, mas rompe-lo é bastante complicado justamente pela invisibilidade do surdocego. 


Para mostrar à sociedade que nós podemos nos comunicar, antes de tudo precisamos de apoio para sermos visíveis. Outro aspecto importante é entender a palavra empregabilidade. Toda palavra que termina em “bilidade” remete a meios, ou seja, são os meios entre as pessoas surdocegas e o emprego em si. Os meios são educação de qualidade, saúde de qualidade, transporte acessível, etc. Ou seja, os problemas brasileiros. Toda essa questão centra-se na negligência governamental de insistir em não enxergar os surdocegos. 


Em 2013, fui o proponente da primeira audiência pública para tratar da inclusão social da pessoa com surdocegueira na Câmara dos Deputados. E o que observei? Os representantes da Secretaria dos Direitos Humanos e do MEC fogem do tema. Reflexionam tudo sobre pessoas com deficiência, menos sobre o tema específico: pesssoa surdocega. O MEC vem afirmando que estão cursando a universidade 148 pessoas com surdocegueira. Ora, números e mais números, porém, nada se atesta das condições de ensino-aprendizagem destas pessoas. 


Na audiência que acabo de destacar, depois de eu mesmo levantar a questão o MEC firmou compromisso de organizar GT (Grupo de Trabalho) para a surdocegueira, mas até agora nada. Assim, desenvolvi uma petição para pressionar. A petição pode ser acessada na página principal do site da Agapasm (www.agapasm.com.br). Por favor, assinem e compartilhem. 


Diário - Quais são as principais questões apontadas por pais e familiares de surdocegos com relação à convivência social? Quais aspectos você busca trabalhar em seu projeto de orientação? 


Garcia - Busco trabalhar todos os aspectos da vida em minhas orientações. Não apenas com familiares, mas com todos. A pessoa surdocega é distinta uma da outra, mas a invisibilidade é similar. Para os educadores, busco desenvolver cursos de formação, ou seja, eles devem aprender aspectos metodológicos para atuarem educacionalmente com pessoas surdocegas. Para a família, minha colaboração é vasta. Vão desde conhecimentos sobre como é o surdocego até as questões sociais. 


Muitas famílias não conseguem alimentar como deveriam o filho surdocego. Quase sempre os surdocegos que nascem assim fazem uso de forte medicação, em geral para controlar estados de autoagressão; e deveriam receber alimentação balanceada, mas tudo se complica para uma família sem recursos financeiros. Para estes casos mais graves, a proposta correta seria receber pensão especial do governo para manter suas necessidades com mais qualidade. 


Diário - Na sua avaliação, enquanto pessoa com deficiência e usuário de serviços públicos, o País precisa evoluir em quais aspectos para atender as pessoas com deficiência com dignidade e qualidade? 


Garcia - Em nosso país, devemos evoluir a ponto de romper com a histórica hierarquização do ser humano, ou seja, alguns seres humanos valem mais do que os outros. A hierarquização, para quem não sabe, tem essência eugênica, de eugenia, e foi esta mesma eugenia que fundamentou o holocausto. Será que um dia essa hierarquização do ser humano no Brasil terá fim? Será que um dia o “modelo médico” que fundamentou a cultura do corpo normalizado (onde apenas tem valor aqueles que podem ser consertados) terá fim? Será que o modelo social onde todos possuem valor a ponto de não precisarem ser consertados será uma realidade no Brasil? 


Diário - Gostaria que falasse como nasceu a Agapasm, que você fundou, e do Instituto Baresi, do qual você é responsável pelo núcleo regional no Rio Grande do Sul? 


Garcia - A Agapasm, em um passado não muito distante, se chamava e era conhecida como o “Contexto Surdocego e Multideficiente do Rio Grande do Sul”, trabalho este pioneiro que organizei e desenvolvi. Conhecei a dura realidade que afetava os surdocegos e multideficientes de nosso Estado. Questionamentos nasceram em minha mente e desejos de igualdade e desenvolvimento pleno a todos os surdocegos e multideficientes começaram a mover minha razão e emoção. 


Sendo um líder na área da surdocegueira no mundo, e compartilhando experiências e valores com outros líderes mundiais, comecei fazer avançar rapidamente o “Contexto Surdocego e Multideficiente”. Esses avanços se refletiram na modificação da qualidade de vida deles. Assim, me tornei o pai de uma das mais significativas políticas públicas para surdocegos na história do Rio Grande do Sul e, porque não dizer, do Brasil e do mundo. 


Demonstrei ser possível mudar a realidade e o destino deles. Com tantos avanços, eu e o “Contexto Surdocego e Multideficiente” começamos a sofrer pressões por parte de pessoas ligadas a governos. O Contexto começou a sofrer interferências partidárias e a ser usado como ferramenta política, perdendo sua identidade. Tentei de todas as formas defender o Contexto, lutando até a exaustão da saúde física. Vencido, observei com grande dor tudo se perder. 

Observei os surdocegos e multideficientes permanecerem estáticos, porém, tive o desejo de justiça fortalecido. Irmanado com as famílias dos surdocegos e multideficientes, com amigos e colaboradores, deu-se a fundação da Agapasm. Ela nasce do desejo de justiça ao nosso povo. Já o Instituto Baresi é um fórum nacional para associações de pessoas com doenças raras, deficiências e outros grupos de minoria, buscando melhorar a qualidade de vida e a inclusão social. 


Nossa missão é melhorar a qualidade de vida de pessoas com doenças raras e facilitar o acesso a informações a respeito deste tema. O nome do Instituto Baresi é uma homenagem ao padre italiano Giampietro Baresi, missionário comboniano, por seu importante trabalho dedicado à cidadania e a justiça social. 


Diário - Você é casado? Tem ou já teve namorada? Como é a vida afetiva e sexual de uma pessoa surdocega? 


Garcia - Sou solteiro. Em minha vida, tive apenas três namoradas. A vida afetiva e sexual de uma pessoa surdocega está diretamente relacionada à distância e à impaciência das pessoas. Sentimos atração e afeto por uma mulher - e o mesmo acontece com a mulher surdocega -, mas não recebemos uma chance. Claro que há surdocegos casados. Para se ter ideia, em 2013 foi desenvolvida pesquisa em Portugal sobre este tema e, se não me falha a memória, 85% dos homens surdocegos são solteiros. Creio que este alto índice seria o mesmo no Brasil. O alto índice de solteiros deixa claro que a surdocegueira é uma enorme barreira e alimenta a tese de que a pessoa com deficiência está fadada à solidão. 


Diário - Você viaja muito pelo País, realiza palestras e participa de programas de televisão. Sente o peso da responsabilidade em representar um movimento social importante no Brasil, que é o da pessoa com deficiência? 


Garcia - Apesar de meus 38 anos, já estou há muitos anos nesta estrada, e as vivências me fazem agir com naturalidade. Este é o meu chão. É o meu jogo. Tenho personalidade forte. Sou uma pessoa de posição. E isso também colabora, e muito, para ter segurança nas ações. Numa viajem, devo antes de tudo me dedicar ao meu fazer específico e, se sobrar tempo, poderei passear. Verdadeiramente, recebi poucas oportunidades da televisão. Seria muito bom receber tais oportunidades. 


Mas gostaria de receber estas oportunidades da grande mídia, para ser de fato útil, e não fazer como aconteceu certa vez no Faustão: uma pessoa surdocega mostrando imagens de seu casamento e saltando de paraquedas. Realmente isso em nada colabora com os surdocegos de nosso País. Gostaria de participar em rede nacional para desenvolver campanhas para doação de medicamentos e alimentos para pessoas surdocegas, estar em programas de debates, desenvolver um documentário para levar à sociedade nossas potencialidades. 


Diário - Você se sente uma pessoa autônoma? Se não, o que faltaria para ter essa autonomia? 


Garcia - Refletir sobre autonomia para uma pessoa com deficiência, e esta sendo surdocega, é realmente complexo. Este tema está conectado às impressões e valores de cada um do que é ser autônomo. A minha autonomia está nas orientações às pessoas do meio. Recordem dos passos para o desenvolvimento destacados anteriormente. Está é a minha visão de autonomia e tem dado certo até agora. Mas, claro, sempre buscando ser melhor. O que nos falta são tecnologias. Tecnologias para nós, surdocegos, são bastante escassas e custosas. Para citar um exemplo: uma linha Braile pode custar entre R$ 15 mil e R$ 40 mil. 


Fonte: Diarioweb

7 de julho de 2014 Comments

Noite de Caldos em prol dos Deficientes Visuais de Petrópolis


No dia 02 de agosto estaremos realizando uma NOITE DE CALDOS em prol dos Deficientes Visuais de Petrópolis. 

Não perca! A Noite de Caldos acontecerá na Matriz de Cascatinha às 19 horas. 

Em caso de dúvida deixe um comentário. 

  • Valor R$ 10,00
 
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