2 de novembro de 2014

Nunca disse que seria fácil

Por Fabiana Ribeiro*
 
DESCRIÇÃO DA IMAGEM: professora desenha no quadro junto com crianças pequenas
 
Tic, tic, tic. Ele entrou estalando os dedos hoje em sala, e eu sei o que significa quando ele chega estalando os dedos. Tic, tic, tic. Esse som já me dizia que o dia seria difícil. Não vi pendurado na mochila o seu macaco amarelo, sujo e  sem um dos olhos. Esqueceu? Caiu na van? Perdeu? Sem aquele macaco que, tantas vezes, já salvara tantos dias, as próximas horas poderiam ficar complicadas. Respiro fundo, ele chegou. Veio com os demais: eles abriram a porta, invadiram as carteiras, trouxeram o barulho de fora e um vento frio. Ele sorriu e logo abaixou a cabeça. Parecia aliviado de me ver e eu não pude esconder o afeto que me movia em sua direção. Tive vontade de passar a mão no seu cabelo, tão liso, preto e e cheio de brilho, mas ele não gosta quando eu faço isso, então, optei por fazer o mesmo carinho em outra criança que, em resposta, me abraçou. Fecho a porta. São só 13h. Eles, todos, eram meus agora.
 
Tic, tic, tic. Não me incomodei com o barulho. Mas Jonas se incomodou. “Isso está me irritando, para com isso”. Ele tentou, mas não parou. “Para! Você não vê que isso incomoda?”. Não, ele não via, sequer notava. Ou via e ignorava. Não sei, ainda não descobri. Em vez de pedir que parasse lhe dei um lápis e ajeitei o seu livro na página que íamos estudar, ele  me entendeu e me atendeu. E me disse no ouvido: “eu vou tentar parar”.
 
As próximas horas se passaram sem grandes alardes. Tic, tic, tic. Um pedia para ir ao banheiro, segundos depois outro também tinha a mesma vontade. Tic, tic, tic.  Alice pegava o lápis de Lalo que não parava de conversar com Joaquim que ria das histórias de Sofia que não entendia a função da letra K… Separei Carlos de Vanessa, assim como apartei brigas por causa de um lego. Tic, tic, tic.  Nada muito fora do normal. Então, foi Laura quem avisou: “O João está desenhando em vez de fazer a atividade. E eu também quero desenhar!”. Pronto. E Laura, sem querer ou querendo, detonou a bomba do dia. Tic, tic, tic. Ele se levantou como tivesse sido pego roubando Batom nas Lojas Americanas. Pegou seu desenho e disse que preferia desenhar a ter de escrever “palavras bobas e idiotas”. Correu para o canto da sala, como se seu papel fosse um segredo ou um tesouro. Tic, tic, tic. Fui em sua direção e pedi que voltasse para o seu lugar e, sim, fizesse suas palavras. Ele nem precisou dizer não. Me mordeu, e eu gritei. Ele não queria fazer isso. “Essa marca vai demorar a sair do meu braço”, pensei.
 
Ninguém riu. Veio Antônio me ajudar. Me ajeitei. Quis sair dali, daquela sala, daquelas crianças. Me senti mal, impotente, incapaz. João começou a andar em círculos, como se tivesse acuado, nervoso, tenso, arrependido. Tic, tic, tic. “Cade meu macaco? Vc pegou o meu macaco?”. “Ele não veio hoje, João. Podemos nos acalmar juntos? Vamos tentar fazer isso sem o macaco?”. Ele queria, mas já não conseguia se controlar. Num espetáculo aberto para as outras crianças, João começou a gritar e, pela segunda vez, me mordeu. A essa  altura, havia outras crianças espiando pela janela e vendo a nossa situação. Rapidamente veio a professora da turma ao lado tentar nos ajudar, mas o caos já estava em sala e a única coisa que podíamos fazer era esperar  a crise passar, enquanto as demais crianças iam para o pátio numa longa fila indiana cantarolando o “sapo não lava o pé”.
 
De repente, Miranda  saiu da fila. Deixei. Ela voltou e puxou João pela mão dizendo “canta com a gente ou estala seus dedos agora”. Tic, tic, tic. “Eu sei estalar também, veja só”. E mostrou seus dedinhos miúdos tentando a custo fazer sair algum som. “Não é assim que faz. Você não sabe ainda”. E foi engatando na conversa, na sua aula de estalar os dedos e na atividade feita num novo ambiente.

Naquele dia, não houve mais crises. Aliás, podemos passar dias sem João perder o controle. Não há um motivo, talvez nem exista um detonador. Vou descobrir — quero descobrir. Não sou médica, não sou sua psicóloga. Eu sou sua professora. Sou o elo do João, da Laura, do Antônio, da Alice, da Sofia, da Miranda com o conhecimento. Então, eu vou descobrir.


No fim do dia, cansada, esgotada, exaurida, tic, tic, tic. Mas já não era João. Era eu. Era eu pensando no João e no desafio diário que é para mim tê-lo em sala. “Nunca disse que seria fácil. Mas também não vou desistir de você”, pensei. Nem da Laura, nem do João. De ninguém.
 

 
*Esse texto é uma ficção. É apenas um dos possíveis retratos de uma sala de aula inclusiva. Incluir não é nada fácil. Não é trivial. Requer fôlego, empenho, afeto, vontade. Tem mais a ver com disposição do que com técnica. Sabemos disso. Não é aceitar em sala e pronto. Incluir é aceitar o desafio do tic, tic, tic. Que, em alguns casos, basta empurrar uma cadeira, instalar uma rampa, puxar a carteira para frente, aumentar uma letra, adaptar um material, evitar alimentos, encaminhar para uma fono, trazer um mediador ou apenas conversar. Noutros, exige paciência, tolerância, afeto e, o indispensável em todas as relações, amor.

Homenagem do blog ParaTodos a tantos professores que aceitam este desafio e fazem de tudo para que ninguém fique pra trás.
 
Fonte: PARATODOS
 
;